Hoje é parada séria. Sei que não combina muito com este Pariscópio, que, como vocês já devem ter notado, é um espaço esculhambado. Prefiro assim. Já me basta escrever com seriedade e circunspecção no trabalho. Blog é lazer.
Mas, depois de três semanas acompanhando, consternada, o conflito no Oriente Médio, não deu para continuar calada. Resolvi tocar no assunto, mas sem entrar no mérito da guerra. Não vou debater quem começou primeiro, quem tem mais culpa no cartório etc. Quero apenas escrever sobre o marisco.
Não, não tomei nenhum alucinógeno e nem estou viajando na maionese. É do marisco mesmo que estou falando.
Como disse o jornalista Silio Boccanera no programa Sem Fronteiras, da Globonews, na guerra entre o mar e a rocha, quem sofre é o marisco. E no choque entre Israel e o Hezbollah, quem sofre e sangra é o Líbano. O Líbano é o marisco do atual conflito.
Sob o pretexto de exterminar a milícia islâmica que seqüestrou dois de seus soldados, Israel esta dilapidando um país que acabou de se reconstruir de uma terrível guerra civil. Em poucos dias, as bombas israelenses reduziram a pó um trabalho de décadas. Arrasaram estradas e pontes, explodiram usinas e centrais energéticas, esburacaram a pista do aeroporto internacional de Beirute, novinho em folha, derrubaram prédios e casas e ainda mataram centenas de civis. Sendo que muitas, muitas crianças.
E tudo isso justo agora que os libaneses tinham conseguido enfim se recuperar. A economia, embora ainda frágil, estava florindo. Depois de anos com medo, os turistas finalmente voltaram Líbano. Basta ver a quantidade de estrangeiros que tiveram que escapar quando os bombardeios começaram. Milhares de pessoas do mundo inteiro estavam no país para conhecer as paisagens estonteantes e curtir as praias paradisíacas da “riviera” libanesa. Todos tiveram que interromper as férias por causa da guerra. Um golpe duro para o turismo que tanto tempo demorou a se reerguer. Só Alá sabe quando os visitantes vão se sentir seguros para visitar o Líbano novamente. E quanto tempo o estado vai levar para reconstruir os atributos locais.
A ironia, diz o escritor Mohamed Kacimi no jornal Libération de ontem, é que os Estados Unidos – que pregam e impõem a democracia aos países orientais – cruzam os braços justamente diante do massacre do único país realmente democrático do mundo árabe.
“Um país com jornais, revistas, televisões e eleições livres. Um país em que se pode rezar para qualquer deus, em nome de qualquer religião, sem correr o risco de ser linchado. Um país em que o povo pode sair às ruas para manifestar contra o governo sem medo de ser atingido por balas de metralhadoras, como em Damasco, ou de ir para o xilindró, como na Tunísia. Um país onde mulheres podem tomar vinho e fumar publicamente, em pleno Ramada, sem serem importunadas. Um país onde cinema e teatro não são censurados. Um país onde um grupo de jovens atrizes protagonizava, em árabe, a peça Monólogos da Vagina.”
E tanta liberdade, na opinião de Kacimi, só pode ser vista com maus olhos pelos vizinhos muçulmanos. A teoria dele é que Israel está realizando pela segunda vez o sonho secreto de todos os estados árabes da região: destruir essa cidade “mundana, promiscua e pecadora” que é Beirute. Uma espécie de Sodoma dos dias atuais.
A prova, segundo ele, é que os sauditas foram os primeiros a “aplaudir” a intervenção israelense e que, não por acaso, os mísseis a laser americanos lançados no Líbano partem de uma base na Arábia Saudita. “Não por medo dos xiitas, como eles dão a entender, mas por ódio dessa terra singular onde, apesar dos quinze séculos de guerra e perseguições, a voz dos muçulmanos radicais não conseguiu silenciar os sinos da Igreja.”
Independentemente dos interesses por trás do conflito, o fato é que nesta batalha quem sai perdendo de imediato é o marisco. Mas no longo prazo, Israel, seja ele o mar ou a rocha, também perde. E muito. Ao contrário das principais emissoras de TV ocidentais, os canais de notícia árabes, como a Al-Jazira, não poupam seus telespectadores das cenas mais atrozes e chocantes do massacre. A carnificina no Líbano é mostrada sem qualquer censura. E são essas imagens que vão ficar gravadas na memória de jovens e crianças árabes, que vão crescer atormentados por um sentimento de ódio contra os judeus. Ao atacar covardemente civis libaneses, Israel alimenta o sentimento anti-semita no mundo a sua volta e mostra ser seu pior inimigo.